Nos diversos ambientes acadêmicos em que ensinei ou participei de estudos sobre a fenomenologia era comum ouvir as pessoas explicitarem as dificuldades diante desse pensador. A grande maioria dos estudantes acaba iniciando os estudos em Martin Heidegger, desconsiderando a herança que ele mesmo carregou e nem sempre reconheceu. Podemos identificar algumas dificuldades fundamentais para se compreender a fenomenologia.
Extensão da obra de Husserl
O primeiro obstáculo se refere à extensão da obra de Husserl. Em vida ele não se preocupou em organizar ou publicar tudo o que escrevia. Permaneceram os manuscritos taquigrafados¹ a serem transcritos e publicados pelos continuadores de seu pensamento. Sabemos que esses manuscritos poderiam ter tido um destino trágico, a fogueira disseminada pelo governo nazista. Graças ao monge Herman Van Breda, esses manuscritos foram levados às escondidas para a Bélgica e lá foram guardados. Diante desse risco ocorrido, sua obra foi depositada em cópias e arquivada em Lovain (Bélgica), Freiburg (Alemanha), Köln (Alemanha), Escola Superior de Paris (França), Duquesne’s Simon Silverman (USA).
Hoje, a extensão de sua obra é de 42 volumes da Husserliana, 14 volumes de cartas e documentos, 9 volumes de estudos complementares e 13 volumes de estudos específicos. Ainda há pouca coisa traduzida para a língua portuguesa. A extensão de sua obra e o tempo gasto para transcrição e publicação levou muitas pessoas a compreenderem Husserl apenas em um determinado espaço de tempo, o que levou a muitos juízos equivocados. Hoje se entende que do ponto de vista metodológico do estudo do pensamento husserliano seja adotada a perspectiva motivacional, exigindo o pesquisador percorrer um determinado conceito ao longo de toda a obra.
Além disto, a fenomenologia se constituiu desde o início com um movimento que a cada dia mais se estende e cresce. Não se trata de uma filosofia ao modo de sistema, fechada, mas uma abertura do pensamento para outras dimensões da realidade. Assim, por exemplo, quando sua assistente Edith Stein perguntou a Husserl o caminho investigativo que ela poderia trilhar, ele imediatamente abriu sinceramente um tema que ele pouco havia refletido, a empatia² (Einfullung). E assim Husserl foi fazendo com os vários alunos e participantes dos círculos de estudo por onde lecionava, especialmente Halle, Göttingen e Freiburg. Seus alunos encontraram desde o início a liberdade para o pensar, mantendo-se apenas a metodologia empregada. E isso era o que mais desafiava seus alunos.
O ver fenomenológico
Martin Heidegger, discípulo e assistente de Husserl, em seu texto “O meu caminho na fenomenologia³” confessa:
As Investigações Lógicas são as obras inaugurais do pensamento husserliano e datam de 1900 e 1901. Antes ele publicou Filosofia da aritmética que foi muito criticada pelo matemático, lógico e filósofo Friedrich L. Frege, que pesquisava a fronteira entre a filosofia e a matemática e foi um dos principais criadores da lógica matemática.
A dificuldade encontrada por Martin Heidegger para entender o pensamento fenomenológico não se situava na dimensão do entendimento, mas do ver. Ele diz que somente a partir do momento em que passou a “ver fenomenologicamente” o mundo é que iniciou a compreensão do modo de proceder da fenomenologia. Assim, para muitos alunos, a dificuldade não está na falta de leitura, mas na atitude a ser adotada diante da fenomenologia. Em outras palavras, estamos diante de um novo método de pensar e investigar a realidade. Muitos preconceitos e incompreensões decorrem dessa dificuldade por parte dos leitores de Husserl e seus discípulos.
Heidegger se refere aos estudos junto a Franz Brentano. Este pensador exerceu papel fundamental no desenvolvimento da fenomenologia como da própria psicanálise. Nessa mesma escola estudou também Freud, além de Husserl e Heidegger.
O pensamento de Husserl é de fato muito complexo. Ele mesmo dizia que seus leitores não tinham paciência de acompanhar seus livros e iam entendê-lo através de Max Scheller e Martin Heidegger.