No segundo parágrafo de Meditações cartesianas quando aborda a necessidade de um recomeço radical em filosofia que o caminho do filosofar exige prudência crítica e postura de se estar sempre pronto a transformar o antigo cartesianismo toda vez que for necessário, e, sobretudo, “evitar certos erros sedutores dos quais nem Descartes nem seus sucessores souberam evitar a armadilha” . Para Husserl, Descartes inaugura um “novo tipo de filosofia”, passando do objetivismo ingênuo da metafísica para um “subjetivismo transcendental”. Reconhece que desde o século XVIII a filosofia encontra-se num estado de decadência em relação a épocas anteriores.
O que aconteceu? O mundo moderno presenciou a fé religiosa transformando-se em convenção externa e uma nova fé tratou de captar e pôr em destaque a humanidade intelectual. Trata-se da fé numa filosofia e numa ciência autônomas e assim, toda a cultura humana deveria ser guiada e esclarecida por visões científicas. Mas, essa nova fé empobreceu, deixando de ser uma fé verdadeira. A filosofia cresceu muito, mas não se encontra nela qualquer ligação interna. O que se tem são pseudo-exposições, pseudo-críticas. E, conclui o quadro real da situação: “Esforços recíprocos, consciência das responsabilidades, espírito de colaboração séria visando a resultados objetivamente válidos, ou seja, purificação pela crítica mútua e capazes de resistir a qualquer crítica posterior, nada disso existe” (HUSSERL, 2001, p. 23).
A situação em que se vive nos tempos atuais é de penúria ainda maior no domínio do pensamento. O quadro da humanidade atual ficou ainda mais confuso e complexo. Do objetivismo cientificista ingressamos num caminho de notícias falsas, discursos falsos, decisões tomadas a partir de premissas nulas, que nem mesmo o campo do Direito ficou ileso. O que está determinando a capacidade de se sustentar é à força da argumentação que se ergue a partir da crença. Crer passou a substituir o compreender e o entender. As novas tecnologias de informação acabaram gestando uma sociedade apressada, que não suporta gastar muito tempo para pensar, ler ou escrever. Tudo deve ser desenvolvido em posts. Algumas figuras acabaram ganhando força nessa penúria intelectual e nem mais cuidado com as palavras ou com o pensamento racional organizado e sistematizado se preserva. São tempos de frases curtas, pensamentos curtos ou nenhum, decisões rápidas e impensadas.
Então, é no quadro da crise do pensamento que nasceu a filosofia transcendental em Descartes e nesse mesmo quadro Husserl propõe um novo rumo, mas continuando o caminho aberto por Descartes, evitando contudo perder-se ou ser seduzido por alguma outra proposta. E onde se situa o momento tão elogiado por Husserl na filosofia cartesiana denominado de caminho transcendental? A fenomenologia é uma filosofia transcendental, mas diferente da filosofia kantiana.
Em Descartes foi a descoberta do Ego cogito que caracterizou a inauguração moderna mais importante na filosofia. Ali está a transcendentalidade. Mas conforme Husserl, Descartes não explorou as possibilidades que essa dimensão daria para o pensamento. E seduzido pelas ciências, enveredou nos caminhos metodológicos. A fenomenologia também se inicia pelo Ego cogito, mas em razão da intencionalidade da consciência, teremos um Ego cogito cogitatum. Tem então um objeto intencionado que Husserl denomina de “guia transcendental”. Ora, conforme ele mesmo nos informa no parágrafo 21 de Meditações cartesianas o ponto de partida não estaria no ego cogito, mas o objeto simplesmente dado. Depois é que a consciência remonta ao modo de consciência correspondente e aos horizontes ali implicados. Assim como um objeto pode ser pensado, também pode ser fantasiado, imaginado, desejado, mantido na memória, enfim, na transcendentalidade encontra um horizonte infinito de dimensões que transformam e enriquecem. Nascem daí as diversas teorias: da percepção, da intuição, da significação, do julgamento, da vontade. Husserl lamenta como faltou a Descartes a orientação transcendental.
Nas lavras de Husserl: Descartes “fez do ego cogito um axioma, uma substância cogitans separada, um mens sive animus humano, ponto de partida de raciocínios de causalidade. É essa confusão que fez de Descartes o pai do contrassenso filosófico, que é o realismo transcendental”. Afirma Husserl (2001, p. 98) que “Descartes não escapou por ter se enganado a respeito do sentido verdadeiro de sua epoché transcendental e da redução ao ego puro. Mas, a atitude habitual do pensamento pós-cartesiano é bem mais grosseira, precisamente por ter ignorado completamente a epoché cartesiana”.
Ele tem o mérito de ter feito a maior das descobertas, porém não captou o sentido correto dessa descoberta, o sentido da subjetividade transcendental verdadeira. A fenomenologia é um caminho para a exploração do “campo infinito da experiência transcendental”. Todo cogito carrega consigo seu cogitatum. É por esse motivo que a consciência tem de ser uma consciência intencional, isto é, carregar sempre seu cogitatum. É o que veremos na aula a seguir.
As Investigações Lógicas, escritas entre 1900 e 1901, são consideradas a obra inicial e fundamental como ponto de partida da fenomenologia. São três volumes que perfazem umas 900 páginas de texto denso e profundo. Os grandes estudiosos do pensamento husserliano tomaram esse texto como inicial e primordial para se conhecer a fenomenologia. Edith Stein testemunha que seu ingresso na fenomenologia se deu com a leitura dessa obra, determinando sua ida à cidade de Gottingen para estudar com o próprio Husserl. E é ali nessa obra que o mestre apresenta o ponto de partida comumente dito de maneira sintética como “voltas às coisas mesmas”. Na parte que trata das investigações para a fenomenologia e teoria do conhecimento que se propõe a esclarecer os fins a que tendem essas investigações, ele assim declara ao modo de uma convocação:
Não queremos dar-nos por satisfeitos com meras palavras, isto é, com uma compreensão verbal meramente simbólica, como a que temos em nossas reflexões sobre o sentido das leis estabelecidas na lógica pura sobre conceitos, juízos, verdades, etc., com suas múltiplas particularidades. Não nos satisfazem significações que ganham vida – quando ganham – de intuições remotas, confusas, impróprias. Queremos retornar às coisas mesmas [grifo nosso]. Na língua alemã, esta frase grifada está assim escrita: Wirwollenauf die “Sachenselbst” zurückgehen! (HUSSERL,2001, p. 218) .
Cena semelhante podemos encontrar na trajetória de René Descartes quando diz que se encontrava perdido entre dúvidas e erros, e que não conseguia encontrar coisa alguma para discutir que não fosse duvidosa. Até mesmo os saberes da matemática se apresentam de maneira confusa e obscura. Nesse sentido é extremamente significativo que Husserl no final da carreira escreve “Meditações cartesianas”, dando a entender que o caminho iniciado por Descartes com a descoberta da transcendentalidade deveria ser continuado, pois Descartes fora seduzido pelas ciências empíricas abandonando o projeto transcendental que mais a frente discutiremos.
Em que consiste voltar às coisas mesmas? Não poderia significar um retorno às essências ao modo do que os escolásticos fizeram. Em Husserl, o retorno às coisas significa um ver face a face aos objetos do mundo, uma face a face do fenômeno. Deixar de lado, ou fazer uma epochéou na língua matemática que ele tanto conhecia um colocar entre parênteses sob a forma de suspensão do juízo. Trata-se de retornar às intuições mais originárias de onde emerge o conhecimento, um retorno àquilo que nos aparece como algo experimentado, vivido, conhecido, fantasiado, imaginado, pela consciência transcendental. É necessário “dar um tempo” aos pré-conceitos de toda ordem colocando-os em suspensão.
Por exemplo: no campo da religião voltar às coisas mesmas significa experimentar o mundo sagrado antes dos ditos dos textos sagrados. Estes se referem a uma experiência vivida. O mesmo direito temos hoje de fazer antes essa experiência e depois nos confrontar com os textos sagrados. Vivemos num fundamentalismo radical que desconsidera qualquer possibilidade de nossa própria vivência. O que determina é a norma. Então, os olhares dos religiosos na atualidade sofrem da necessidade de uma redução, de uma suspensão. As pessoas hoje se guiam puramente pelos pré-conceitos abdicam da riqueza do caminho de voltar às coisas mesmas.
Nas aulas do curso citei como exemplo o momento da chegada dos portugueses no Brasil em 1500. A primeira preocupação deles foi até motivo de envio de cartas a Portugal solicitando vestimentas, era o fato de os indígenas andarem nus. Para os portugueses, carregados de preconceitos morais já consolidados, andar nu era uma indecência, uma imoralidade. Por isso, era preciso cobrir as vergonhas dos indígenas. Nesse caso, voltar às coisas mesmas significa retornar à vivência estabelecida no andar nu dos indígenas. Até onde nos é permitido caracterizar o andar nu como imoral? Ou a imoralidade não estaria nos olhares preconceituosos do homem branco?
Nesse ponto, muitos alunos iniciam os estudos de fenomenologia e aqui também abandonam. Conforme testemunha Martin Heidegger¹ , o ensino de Husserl era um exercício progressivo, bem como aprendizagem do “ver fenomenológico”. Em primeiro lugar, o mestre exigia a renúncia de qualquer uso não crítico de conhecimentos filosóficos, bem como a não trazer para o diálogo a autoridade dos grandes pensadores. Trata-se de não partir de pré-juízos, teorias já consolidadas. Era necessário estabelecer uma epoché (suspensão de juízos), como falaremos mais adiante. Heidegger confessa que não conseguia se afastar de Aristóteles e que o “ver fenomenológico” fecundava a interpretação dos textos desse pensador.
O passo decisivo é caracterizar o que vem a ser esse “ver”. Como não se trata de uma corrente filosófica ou um sistema, caberá apenas ver a possibilidade do pensamento de corresponder ao apelo do que é pensado. Trata-se de verificar e compreender a fenomenologia como possibilidade.
A fenomenologia se apresenta então como uma descrição do fenômeno produzida pela consciência intencional. Trata-se de atentar para o fluxo imanente das vivências que constitui a consciência. Aqui reside a condição a priori de possibilidade do conhecimento. Nota-se que não estamos no mesmo modo de tratar o entendimento a partir das formas a priori de espaço e tempo. O ver fenomenológico implicar em abrir os olhos para isso que estou vendo, para que a coisa percebida apareça no horizonte em que se mostra e nos limites em que se mostra. Não estamos falando de uma realidade objetiva ou subjetiva, pois a percepção não é uma faculdade que se encontra na interioridade. A percepção é puramente ato de perceber que ocorre no interior das relações intencionais. O ato de ver é um acontecimento do fenômeno.
Merleau-Ponty seguindo as trilhas do ver fenomenológico vai tratar da percepção reduzindo inicialmente todas as teorias idealistas da percepção e da consciência, buscando os vetores internos ao fenômeno, que possibilitam ver o fenômeno em outras perspectivas, em outros perfis. E, sustenta que “é por meu corpo que compreendo o outro, assim como é por meu corpo que percebo as coisas” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 25). O sentido de um gesto não se esconde no interior da consciência, mas se confunde com a estrutura do mundo que o gesto desenha.
O mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo. E, por isso ele é um fenômeno inesgotável. Não há uma verdade interior a ser perscrutada, pois nem homem interior existe. O homem está no mundo e nele se conhece. É no mundo que se dá o “ver fenomenológico”.
Então, a dificuldade para se conhecer a fenomenologia não está na ordem do entendimento. Enquanto a pessoa não conseguir ver fenomenologicamente as coisas irá ter dificuldades cada vez maiores nos estudos de fenomenologia. A primeira orientação que dou aos alunos para entender o pensamento fenomenológico está aqui – “vocês devem se esforçar para ver fenomenologicamente as coisas, os fenômenos”. Permanecer na atitude natural ou cientificista a pessoa cairá na impossibilidade absoluta de conhecer o pensamento fenomenológico.
¹ HEIDEGGER, Martin. Meu caminho para a fenomenologia. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 299.
O ambiente científico em final do século XIX e início do século XX estava marcado pela disputa epistemológica entre dois grupos: os psicologistas e os logicistas. Em discussão estava a divergência quanto ao fundamento teórico que se dava para a ciência. Desta forma, Frege, Russell e outros lógicos empreendiam esforços para vincular a Matemática à Lógica e assim torná-la uma ciência sem contradições. Frege demonstrava em seus estudos como a Aritmética é pura lógica.
E assim, enquanto a Lógica atestava o sistema de verdades matemáticas se teria conseguido escrever a Aritmética conforme um sistema lógico, sem contradições, verdadeiro. A empreitada era grande, pois esse trabalho deveria mostrar concretamente que todas as proposições matemáticas podem ser expressas na terminologia lógica e se deveria demonstrar também que todas as proposições matemáticas verdadeiras são as expressões verdadeiras para a lógica. O logicismo foi muito importante e se constituiu no ponto de partida para o desenvolvimento da Lógica Matemática Moderna.
Um dos pensadores que servirá de fundamento para o psicologismo é o empirista John Stuart Mill. A tendência era de se abandonar os dados da intuição em vista da construção de sistemas formais e realizar assim a unificação da ciência. O Positivismo só piorou essa questão. Hussserl estava diante de uma oposição dura entre objetivismo e subjetivismo. Desenvolve-se a posição de um psicologismo lógico que objetivava assimilar a lógica à psicologia. Também poderíamos dizer da existência de um psicologismo semântico que reduz as significações linguísticas às entidades psicológicas e um psicologismo epistemológico que reduz o conhecimento a um processo psicológico.
Conforme Cavalieri¹ , as questões relativas ao sujeito e à subjetividade foram eliminadas da práxis científica. A psicologia considerava essas dimensões sob a ótica do naturalismo ou fisicalismo, de forma que ao se definir a consciência a considerava como um conjunto de reações físico-químicas que ocorriam no cérebro.
Assim, os psicologistas defendiam que tanto a lógica quanto as demais ciências tinham sua fundamentação teórica na psicologia do pensamento. Portanto, tanto o objeto do conhecimento como o próprio pensamento eram reduzidos a fatos e operações psíquicas, desconsiderando a infraestrutura lógica do pensamento.
Husserl inaugura a fenomenologia escrevendo entre os anos de 1900 e 1901 as Investigações lógicas. E, logo no primeiro volume se dedica inteiramente na análise da psicologia e do psicologismo. Para ele é impossível alcançar a apoditicidade (necessidade e universalidade) da verdade sem a idealidade das significações lógicas e das significações em geral. Por isso, as leis lógicas que são o sustentáculo da ciência não podem fundamentar-se na psicologia, que é uma ciência empírica, sem a precisão das regras lógicas.
Assim, o psicologismo revela-se infrutífera, pois não consegue resolver o problema fundamental da teoria do conhecimento, ou seja, o problema de como é possível alcançar a objetividade. Como é possível que o sujeito cognoscente alcance com certeza e evidência uma realidade que lhe é exterior e cuja existência é heterogênea à sua?
O psicologismo se origina do naturalismo e ambos tendem a anular a dualidade ou a diferença entre o sujeito e o objeto, afirmando que a única realidade é a natureza.
Tudo é natural ou físico, a consciência é uma expressão vaga do que se costuma atribuir a eventos físico-fisiológicos ocorridos no cérebro e no sistema nervoso. Para o psicologismo tudo deveria ser reduzido a entidades empíricas observáveis e assim a teoria do conhecimento seria uma psicologia.
O psíquico não é uma coisa, mas um fenômeno. O fenômeno é a consciência enquanto fluxo temporal de vivências e cuja peculiaridade é a imanência e a capacidade de outorgar significação às coisas exteriores. A consciência, sendo estudada em sua estrutura imanente ela surge como possibilidade do conhecimento, como consciência transcendental.
A postura psicologista redunda na impossibilidade do conhecimento científico enquanto conhecimento universal e necessário. É um engano teórico que compromete a possibilidade do pensamento.
Mas, o interesse de Husserl pela psicologia é muito grande e faz uma proposta de uma psicologia fenomenológica² que trata efetivamente da subjetividade e do psiquismo humana a partir da consciência intencional. Para ele, é preciso resgatar as bases filosóficas de uma ciência rigorosa do psíquico, superando assim a crise da psicologia positivista e cientificista. Esse projeto pela busca de uma psicologia fenomenológica está nas obras finais de seu pensamento: “Psicologia fenomenológica” de 1925; “Artigo da Enciclopédia Britânica” de 1927; “Conferências de Amsterdam” de 1928; e “A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental” de 1936.
A filosofia é em todos os sentidos e de pleno direito a única ciência absolutamente rigorosa porque fornece a si própria os seus fundamentos e dos de todas as ciências, sejam elas, puras ou empíricas.
¹ CAVALIERI, Edebrande. A via a-teia para Deus e a ética teleológica
a partir de Edmund Husserl. Vitória: EDUFES, 2013.
² GOTO, T.A. Introdução à Psicologia Fenomenológica: A Nova Psicologia de Edmund Husserl. São Paulo: Paulus, 2015.
Husserl está convencido que a primeira forma de relação do homem com o mundo não se situa na ordem do conhecimento ou da representação, pois nossa compreensão de mundo é anterior às determinações científicas. Essa certeza é fundamental para o ato de iniciar a filosofar. Não se começa com as representações, com os conceitos. A filosofia, para ele, tinha uma função especial, de criar uma “nova forma cultural” que estabelecesse “uma nova relação de convivência comunitária”. Assim, a comunidade profissional dos filósofos teria por tarefa dedicar-se a “uma movimento comunitário crescente em vista da educação, afirma Husserl (1996, p. 70-71). E esclarece:
Eu procuro percorrer os caminhos que eu mesmo tenho percorrido, não para doutrinar; procuro simplesmente perceber, descrever isso que vejo. Eu não tenho nenhuma outra pretensão senão a de poder falar, antes diante de mim e depois dos outros, com conhecimento de causa e em plena consciência como alguém que tem vivido em toda a seriedade o destino de uma existência filosófica (1954, & 7, p. 17).
A filosofia assim se torna um diálogo intersubjetivo e uma meditação infinita. Somos um laço de relações e nisso consiste a necessidade de uma reflexão que caminha de maneira intersubjetiva, e não uma meditação que ocorre e se desenvolve tão somente no espaço restrito e solitário de uma sala. A filosofia não pode tornar-se uma doutrina, pois assim não educaria, mas domesticaria. Não tornaria os homens livres. A filosofia só cumpre sua tarefa na medida em que torna e transforma as pessoas em seres livres. “A filosofia não torna livre apenas o filósofo, mas também qualquer homem que seja formado na filosofia” (HUSSERL, 1954, p. 6). Não uma liberdade como expressão de um indivíduo isolado. Ela nos obriga a buscar as diversas gêneses de sentido. O filósofo tenta pensar sempre o mundo, o outro e a si mesmo. Inclusive tenta pensar o transcendente, Deus¹ .
Sobre isso, Husserl (1954, Hua VI, p. 5-6) nos oferece uma compreensão lapidar:
A primeira coisa é a teoria filosófica. Deve ser posta em prática uma consideração racional do mundo, livre dos vínculos do mito e da tradição em geral, uma consciência universal do mundo e do homem que proceda com absoluta independência dos prejuízos – que alcance enfim o conhecimento no mundo mesmo, a razão e a teleologia que lhe são imanentes e o seu mais alto princípio: Deus.
Foi por esse caminho que desenvolvi uma via não teológica para Deus, ou seja, sem ser negação, mas percorrendo os caminhos do mundo, da história, nessa teleologia que nos conduz ao bem.
____________________________
¹ Conferir a tese de doutorado de Cavalieri, EDUFES, 2013: “A via a-teia para Deus e a ética fenomenológica a partir de Edmund Husserl”.
Muitas estudantes cometem equívocos ao considerar que um ou outro autor com algumas obras expressam o que vem a ser a fenomenologia. Acabam reduzindo erroneamente e compreendendo erradamente as principais ideias da fenomenologia. Herbert Spiegelberg¹ foi muito certeiro ao caracterizar a fenomenologia como “movimento”.
Edmund Husserl (1859-1938)
A fenomenologia teve início com Edmund Husserl, apesar de o termo já ser conhecido dos meios acadêmicos. O termo apareceu pela primeira vez no século XVIII com Christian Wolff que se referia a uma espécie de teoria da ilusão. Depois, Kant também utilizou desse termo indicando como disciplina propedêutica à metafísica. E em Hegel o termo aparece como título da sua maior obra – Fenomenologia do Espírito. Em algumas conferências de Franz Brentano também aparece na reflexão a respeito da metafísica. Mas Husserl não se vincula a nenhum conceito anterior para o uso do termo “fenomenologia”.
Husserl nasceu em 08 de abril de 1859 em Prossnitz (Morávia), de origem judaica, mas nunca seguiu a religião, tendo mais tarde se convertido ao luteranismo por ocasião de seu casamento com Malvina. Essa conversão ao luteranismo tem outro motivo mais profundo. Para ele o cristianismo tem um sentido de universalização, pois não se prende um determinado grupo étnico, racial ou cultural. Todos podem ser cristãos. Isso está de acordo com a filosofia, também saber universal que supera os limites. Cristianismo e filosofia se equivalem em termos de universalidade de atitudes.
Seus estudos superiores foram na direção da astronomia e matemática, inclusive seu doutoramento foi sobre o cálculo das variações em Karl Weierstrass. Teve a oportunidade de ouvir o filósofo Friedrich Paulsen sobre lições de ética e ficou muito impressionado. Da matemática aprendeu algo muito importante para a filosofia. Para ele, esse saber deveria buscar sempre a clareza e a evidência. Estudou com Karl Stumpf e sob sua orientação publicou a obra Sobre o conceito de número, que sofreu grande crítica do matemático G. Frege. A partir daí sua busca se direcionou para a escola de Franz Brentano. Foi ali que aconteceu uma guinada no pensamento de Husserl. Acrescentam-se ainda os estudos sobre o Conceito humano de mundo de Richard Avenarius e a Análise das sensações de Ernst Mach. Quando se lê as Investigações lógicas é possível encontrar aí o diálogo de Husserl com todos esses autores.
O próprio Husserl em suas conferências de Amsterdam em 1928 confessa que a sua fenomenologia pode ser compreendida como uma “certa radicalização de um método fenomenológico desenvolvido e praticado anteriormente por certos pesquisadores das ciências da natureza e certos psicólogos²” . Entre os cientistas da natureza estão Ernst Mach e Ewald Hering; e entre os psicólogos já é por demais conhecida a influência de Franz Brentano. Na obra: Os problemas fundamentais da fenomenologia Husserl indica que o primeiro germe da redução fenomenológica estaria em J. S. Mill. O que nos chama a atenção é que as críticas presentes em Prolegômenos à lógica pura são dirigidas a Mach e Mill. Mas, reconhece neles principalmente nas últimas obras a gênese de sua própria fenomenologia. Isso nos convoca a estudarmos diversos autores em outras áreas do conhecimento para entendermos a fenomenologia hussserliana.
A primeira experiência de Husserl como docente aconteceu na universidade de Halle (1887-1901), mas não como professor titular. A situação econômica da família nessa época não era das melhores. E aqui sua pedagogia filosófica tinha uma característica que ele mesmo confessa: “Busco conduzir, não instruir³” . Depois, foi ensinar na Universidade de Leipzig e Freiburg, formando grupos de estudos da fenomenologia que se reunia às sextas-feiras na própria casa. Foi a partir dessa experiência de grupos de pesquisa que surgiram inúmeros outros mundo a fora.
Os círculos fenomenológicos e sucessores na fenomenologia
Os círculos fenomenológicos ampliaram e desenvolveram os horizontes da fenomenologia. Assim foram aparecendo expoentes fundamentais em diversas áreas da filosofia e ciências humanas: Alexander Pfander (Psicologia), Adolf Reinach (Ontologia), Moritz Geiger (Estética), Hedwig Conrad-Martius (Realidade), Roman Ingardem (ontologia), Edith Stein (Fenomenologia e mística), Alexandre Koyré (Ciência), Ludwig Landgrebe (Filosofia), EugenFink (Filosofia), Alfred Schutz (Sociologia), Max Scheler (Filosofia), Nicolai Hartmann (Filosofia), Martin Heidegger (Fenomenologia hermenêutica).
Na França outro grupo de pensadores deu à fenomenologia novos contornos: Gabriel Marcel (Filosofia), Jean-Paul Sartre (Filosofia), Maurice Merleau-Ponty (Filosofia), Paul Ricoeur (Filosofia Hermenêutica), Emmanuel Levinas (Filosofia ética).
Em decorrência das perseguições nazistas, outro grupo migrou para os Estados Unidos: DorionCarins, MarwinFarber, Aron Gurwitsch, Felix Kaufmann, Fritz Kaufmann e Fritz Kaufmann, Arnold Metzger e Alfred Schutz.
O esforço filosófico de Husserl e seus sucessores se direcionou e se direciona ainda hoje a resolver de maneira simultânea uma crise das ciências do homem e uma crise das ciências em geral. Ainda não escapamos desse desafio. O curso objeto desse escrito incluiu uma conferência de Husserl que fora discutida sob a forma de seminário: A crise da humanidade europeia e a filosofia4 .
A fenomenologia pode ser definida como um diálogo e uma meditação infinita e não nos cabe prever onde vai dar. Ela se caracteriza pelo inacabamento. Ao contrário dos sistemas filosóficos. E esse inacabamento não se refere a uma fraqueza, mas ao desafio que a sustenta – “revelar o mistério do mundo e o mistério da razão”, como nos diz Merleau-Ponty5 .
__________________________
¹ SPIEGELBERT, Herbert. The phenomenologicalmovement. Dordrecht/Boston/London: KluverAcademicPubliscers, 1994. 768p.
Muitas vezes é comum ouvir a indagação de como uma pessoa com formação completa incluindo o doutorado em matemática iria investir ainda mais seus estudos e pesquisas no campo da filosofia. E ao que nos parece, essa motivação já se apresenta numa conferência inaugural em Hale, onde ensinou de 1887 a1901, Über die ZieleundAufgaben der Metaphysik ("Sobre os objetivos e problemas da metafísica"). O objeto tradicional da metafísica é o estudo do Ser. Neste texto Husserl já apresenta seu método de análise da consciência como o caminho para uma nova e universal filosofia e uma nova metafísica. Para Husserl, a base filosófica para a lógica e a matemática precisa começar com uma análise da experiência que está antes de todo pensamento formal.
Essa preocupação com a metafísica foi continuada de maneira mais intensa por seu discípulo Martin Heidegger¹ que sustenta um “passo de volta”, de “repetição” e de “desconstrução” da tradição metafísica. Por isso, alguns alunos confundem a proposta da fenomenologia, principalmente no que consiste a dimensão transcendental, e dizem que esse movimento é uma continuidade da filosofia transcendental kantiana. Alguns entendem que não se trata de reconstruir uma nova metafísica, mas recolocar a filosofia em novas bases. Em Meditações Cartesianas escreve: “A fenomenologia exclui apenas uma metafísica ingênua que se refere às absurdas coisas em si, mas não a Metafísica em geral”.
Husserl define a metafísica como ciência dos mais altos princípios e últimos problemas. Contudo, a metafísica clássica é considerada ingênua por que pôs entre parênteses a idealidade (sentido), precisamente aquilo que é a medula de tudo e conserva um caráter de evidência plena.
Na verdade, a crítica da fenomenologia husserliana indica um fracasso da metafísica e tendência positivista que vem desde Galileu, que transformou a natureza num vestido de ideias. Isso leva à perda do sistema de valores e fins racionalmente estabelecidos. “Meras ciências de fatos fazem meros homens de fatos”, nos diz Husserl. As representações científicas acabaram por exercer um afastamento do mundo caindo numa grande abstração, pois o mundo é aquilo que eu vivo e não uma definição. Nesse sentido a metafísica tradicional em seu modo de descrever os seres teve continuidade nas representações abstratas da ciência. Conforme Merleau-Ponty (1994, p. 18), “a filosofia não é o reflexo de uma verdade pré-estabelecida, mas assim como a arte, é a realização de uma verdade”.
Na obra: “A Crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental”, escrita na maturidade Husserl escreve: “Levar a razão latente à compreensão de suas possibilidades e, consequentemente evidenciar a verdadeira possibilidade duma Metafísica. Eis o único meio de introduzir a Metafísica e a Filosofia Universal no laborioso caminho da realização”.
A extensão dessa crise é maior que imaginamos. A metafísica objetivista da ciência moderna tem responsabilidade na crise contemporânea. A metafísica se transformou numa mera descrição dos entes. E conforme Heidegger, o problema : o sentido do ser caiu no esquecimento. Pois, a metafísica tradicional restringe o ser no que é característico universal.
A fenomenologia então em termos metodológicos propõe um retorno ao mundo-da-vida (Lebenswelt), subjetivo-relativo, dimensão aproximativa, solo de toda operação de conhecimento e toda determinação científica. A crítica ao psicologismo e ao naturalismo cientificista mostra um pouco essa crise que na verdade é uma crise da formação cultural moderna, da formação cultural ocidental.
A metafísica é expressa pela técnica e a instrumentalização geral do mundo. Retorno ao mundo subjetivo-relativo, dimensão aproximativa, (Lebenswelt) que é o solo de toda operação de conhecimento e toda determinação científica. Assim, nas palavras de Merleau-Ponty (1994, p. 19), “a verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo, e nesse sentido uma história narrada pode significar o mundo com tanta ‘profundidade’ quanto um tratado de filosofia”.
_______________________
¹É de fundamental
importância a leitura de Ser e tempo
buscando compreender como é fundamental uma espécie de “destruição da história
da ontologia”, onde ocorreu uma trivialização da questão do ser.
AULA 1: CENÁRIO INICIAL DA FENOMENOLOGIA HUSSERLIANA
17/01/2020 10:38:12
CONTEXTO GERAL DA FENOMENOLOGIA
AULA 1: CENÁRIO INICIAL DA FENOMENOLOGIA HUSSERLIANA
Nos diversos ambientes acadêmicos em que ensinei ou participei de estudos sobre a fenomenologia era comum ouvir as pessoas explicitarem as dificuldades diante desse pensador. A grande maioria dos estudantes acaba iniciando os estudos em Martin Heidegger, desconsiderando a herança que ele mesmo carregou e nem sempre reconheceu. Podemos identificar algumas dificuldades fundamentais para se compreender a fenomenologia.
Extensão da obra de Husserl
O primeiro obstáculo se refere à extensão da obra de Husserl. Em vida ele não se preocupou em organizar ou publicar tudo o que escrevia. Permaneceram os manuscritos taquigrafados¹ a serem transcritos e publicados pelos continuadores de seu pensamento. Sabemos que esses manuscritos poderiam ter tido um destino trágico, a fogueira disseminada pelo governo nazista. Graças ao monge Herman Van Breda, esses manuscritos foram levados às escondidas para a Bélgica e lá foram guardados. Diante desse risco ocorrido, sua obra foi depositada em cópias e arquivada em Lovain (Bélgica), Freiburg (Alemanha), Köln (Alemanha), Escola Superior de Paris (França), Duquesne’s Simon Silverman (USA).
Hoje, a extensão de sua obra é de 42 volumes da Husserliana, 14 volumes de cartas e documentos, 9 volumes de estudos complementares e 13 volumes de estudos específicos. Ainda há pouca coisa traduzida para a língua portuguesa. A extensão de sua obra e o tempo gasto para transcrição e publicação levou muitas pessoas a compreenderem Husserl apenas em um determinado espaço de tempo, o que levou a muitos juízos equivocados. Hoje se entende que do ponto de vista metodológico do estudo do pensamento husserliano seja adotada a perspectiva motivacional, exigindo o pesquisador percorrer um determinado conceito ao longo de toda a obra.
Além disto, a fenomenologia se constituiu desde o início com um movimento que a cada dia mais se estende e cresce. Não se trata de uma filosofia ao modo de sistema, fechada, mas uma abertura do pensamento para outras dimensões da realidade. Assim, por exemplo, quando sua assistente Edith Stein perguntou a Husserl o caminho investigativo que ela poderia trilhar, ele imediatamente abriu sinceramente um tema que ele pouco havia refletido, a empatia² (Einfullung). E assim Husserl foi fazendo com os vários alunos e participantes dos círculos de estudo por onde lecionava, especialmente Halle, Göttingen e Freiburg. Seus alunos encontraram desde o início a liberdade para o pensar, mantendo-se apenas a metodologia empregada. E isso era o que mais desafiava seus alunos.
O ver fenomenológico
Martin Heidegger, discípulo e assistente de Husserl, em seu texto “O meu caminho na fenomenologia³” confessa:
Eu esperava das Investigações Lógicas de Husserl um esclarecimento decisivo para as questões que me suscitara a dissertação de Brentano. Porém, os meus esforços eram vãos, uma vez que, como só muito mais tarde me haveria de dar conta, eu não procurava na direção certa. De qualquer forma, sentia-me tão impressionado pela obra de Husserl, que continuei a lê-la, uma e outra vez, nos anos seguintes, sem chegar a alcançar a noção suficiente daquilo que tão fortemente me prendia a ela.
As Investigações Lógicas são as obras inaugurais do pensamento husserliano e datam de 1900 e 1901. Antes ele publicou Filosofia da aritmética que foi muito criticada pelo matemático, lógico e filósofo Friedrich L. Frege, que pesquisava a fronteira entre a filosofia e a matemática e foi um dos principais criadores da lógica matemática.
A dificuldade encontrada por Martin Heidegger para entender o pensamento fenomenológico não se situava na dimensão do entendimento, mas do ver. Ele diz que somente a partir do momento em que passou a “ver fenomenologicamente” o mundo é que iniciou a compreensão do modo de proceder da fenomenologia. Assim, para muitos alunos, a dificuldade não está na falta de leitura, mas na atitude a ser adotada diante da fenomenologia. Em outras palavras, estamos diante de um novo método de pensar e investigar a realidade. Muitos preconceitos e incompreensões decorrem dessa dificuldade por parte dos leitores de Husserl e seus discípulos.
Heidegger se refere aos estudos junto a Franz Brentano. Este pensador exerceu papel fundamental no desenvolvimento da fenomenologia como da própria psicanálise. Nessa mesma escola estudou também Freud, além de Husserl e Heidegger.
O pensamento de Husserl é de fato muito complexo. Ele mesmo dizia que seus leitores não tinham paciência de acompanhar seus livros e iam entendê-lo através de Max Scheller e Martin Heidegger.
___________________________________
¹ Husserl usava a Taquigrafia de Gabelsberger, muito comum na Alemanha e Áustria na época.
² Sobre essa questão vale percorrer a reflexão da discípula, assistente de Husserl e primeira mulher alemã com o título de doutorado Edith Stein, martirizada em Auschwitz.
³ HEIDEGGER, Martin. O meu caminho para a fenomenologia. Covilhã (Portugal): LusoSofia Press, 2009. P. 4.
Estamos apresentando uma síntese de um curso sobre a fenomenologia husserliana ministrado em 2018 aos alunos do Instituto de Imensa Vida de Desenvolvimento Humano de Vitória, Espírito Santo. A proposta foi de se apresentar os principais conceitos da fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938), base do trabalho de Bert Hellinger. Nas aulas foi possível exemplificar os conceitos e possibilitar aos presentes perguntarem, bem como comentar o que estava sendo apresentado relacionando com a perspectiva adotada pelo Instituto. Apresentamos sob a forma de slides nas aulas e aqui desenvolvemos uma pouco mais o tema.
Nessa primeira etapa apresentamos 12 aulas com os aspectos mais gerais da fenomenologia. Na segunda parte faremos um detalhamento maior dos principais conceitos herdados da fenomenologia husserliana. Ainda está em projeto desenvolver outros campos mostrando a fenomenologia desenvolvida por outros pensadores como Martin Heidegger, Merleau-Ponty, Edith Stein, etc.
Apresentamos esse trabalho dividido em duas partes: na primeira abordamos o contexto geral em que está situada a fenomenologia e na segunda parte vamos tomar os principais conceitos para o estudo. Muitos alunos me perguntam por onde começar o estudo da fenomenologia. Penso que partindo de Edmund Husserl seja o caminho mais correto. Alguns tentam estudar esse pensado, mas enveredando pelo atalho, querendo talvez chegar mais rapidamente à compreensão dos conceitos. Assim tomam Martin Heidegger ou outro pensador, geralmente discípulos do mestre. Uma das justificativas para isso foi o fato de suas obras serem publicadas tardiamente, estando em grande parte ainda taquigrafadas na primeira metade do século XX. Hoje, esse atalho não se justifica mais, pois o conjunto da obra husserliana está à disposição dos leitores. Aqueles que dominam a língua alemã e o inglês estarão mais preparados, pois as traduções para outros vernáculos é lenta.
A fenomenologia é um dos movimentos mais importantes da filosofia contemporânea, ainda em grande parte desconhecida dos meios acadêmicos. Gostaria de citar uma frase de Husserl que expressa bem o que vem a ser esse pensamento: Não é da filosofia que deve partir o impulso da investigação, mas sim das coisas e dos problemas. E foi exatamente nessa direção que o pensamento husserliano avançou descortinando novos horizontes. Ele não desconsiderava a tradição, mas não ficava preso a ela.
____________________________
¹Professor Titular da área de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo e doutor em Ciências da Religião.
Foi membro, como religioso professor na Congregação dos Missionários Mariannhill por 25 anos e trabalhou a maior parte de sua vida como padre na região da África do Sul junto à população dos Zulus.
Quando nasceu: 16.12.1925
Quando faleceu: 19.09.2019
Como foi a sua saída da Congregação?
Numa entrevista que Hellinger deu a Gabriele Ten Hovel que se transformou num livro chamado : “O Reconhecimento das Ordens do Amor” da editora Cultrix na pg. 35, Bert Hellinger afirma que sua saída da Ordem Missionária Católica, não foi um rompimento, que não tinha acusações contra à Instituição. Foi um ciclo de sua vida importante que chegou ao fim. Quando ele ficara num internato da mesma Instituição ainda criança até o início da sua juventude, afirmou que foi um dos períodos mais importantes de sua vida. Olhava tudo que recebeu como algo importante que tinha deixado no passado e que sua história com a Igreja em muitos aspectos tinha efeitos positivos em sua vida. Quando ele fala sobre esse tema, discorre com respeito e gratidão. Ele recebeu da Congregação e também deu algo ao grupo religioso que pertencia, houve uma troca e ele seguiu com a vida sem nenhuma reinvindicação. Falou da relação de amizade que tinha com seu pároco local e olha para as paróquias como algo bom, mas que faz parte do passado e que não pertence mais a Instituição. A saída de Hellinger da Congregação não foi um abandono, ele mandou carta a seus superiores em Roma, comunicando sua saída conforme as regras canônicas da época. Agiu de forma adulta e respeitosa.
Quando Hellinger saiu ele se casou?
Sim, duas vezes. A primeira mulher foi Herta e a segunda que viveu até morrer Maria Sophie.
Teve filhos? Não.
As constelações tem caráter místico ou religioso? Não.
Qual a fundamentação? A fundamentação está na fenomenologia e nos seus predecessores como Virginia Satir, Janov, Moreno.
Quando posso fazer uma constelação?
Uma constelação é em casos de questões sistêmicas. Uma questão sistêmica é quando acontece eventos recorrentes na vida pessoal ou no grupo familiar. Exemplos: Inicia vários projetos sem conseguir concluir, falência financeira, envolvimentos frequentes com pessoas comprometidas com outros parceiros(as), envolvimentos constantes com parceiros violentos. Sensação de que algo ruim irá acontecer quando completar uma certa data de aniversário- Síndrome do aniversário. Eventos de depressão frequente entre os membros da família. Sensação de não pertencimento no sistema familiar, e outros.
Se constela um defeito de caráter?
Defeito de caráter se resolve com as terapias convencionais, as constelações não substituem as intervenções tradicionais: psicanálise, gestáltica terapia, análise corporal, psicologia positiva, psicologia analítica e outras abordagens. As constelações podem proporcionar uma ajuda eficaz nessas e em outras abordagens. Tive experiências de psicólogos que levaram seus clientes para participar de workshop de constelação ou para uma sessão individual e foi extremamente revelador tanto para o cliente como para o próprio psicólogo, ajudando na compreensão de algumas dinâmicas ocultas presente na vida do indivíduo, ambos puderam dar passos rápidos no processo da análise. A ajuda era imediata e o psicólogo se colocava no seu lugar em paz como terapeuta e o cliente adquiria forças para uma resolução. Nem tudo se resolve com as constelações e as constelações podem ajudar profundamente nas dinâmicas ocultas que dificultam a vida do cliente fluir com leveza e progresso.
Como acontece uma constelação?
É muito simples. Sendo em grupo ou individual, o condutor ou Constelador, fica sentado e o cliente senta-se ao lado do Constelador se o trabalho for em grupo ou na frente do condutor, sendo individual. Esse procedimento pode variar, o importante é o cliente e o condutor estarem confortáveis e seguros. O condutor pergunta qual a questão, qual o problema e o cliente deve falar de forma clara e objetiva sem muitos detalhes, isso porque a abordagem é breve e focada, e para evitar transferências e contratransferências, olhamos para o cliente como protagonista do processo, o responsável, como adulto, evitando todas as armadilhas de infantilização, de vitimização ou de aceitar a missão de resolver o problema. Uma solução vem do movimento fenomenológico das constelações, é um trabalho anímico. O condutor pode ou não fazer algumas perguntas a partir do genograma. Estando claro a questão, o condutor pede que o cliente escolha pessoas para representar os elementos mais importantes. Após a escolha, o cliente irá posicionar os representantes num determinado espaço, seguindo seus sentimentos, nesse momento, acontece a constelação propriamente dita. Constelar é colocar os representantes escolhidos, um em relação ao outro, no espaço físico pré-determinado, essa colocação deve ser concentrada e em silêncio, seguindo uma imagem interna da família ou da questão que o cliente tem na sua psiquê. Eu sempre digo que é uma pintura que se faz usando os representantes ao invés de tinta e pincel, é uma expressão de um pedaço do mundo interno que está em conflito. Essa imagem não constitue os fatos em si, mas ela pode dizer muito dos fatos. Colocado os representantes, é dado um tempo para que os representantes experimentem como é ficar naquele lugar dado pelo cliente, se ele tem relação com os demais membros representados, se ele tem algum sentimento. Após esse tempo, o condutor pergunta se os representantes tem alguma coisa para falar estando daquele lugar colocado pelo cliente. E, é interessante que eles revelam até o que não foi dito pelo cliente. O condutor tem o olhar nos representantes, no cliente e quando em grupo, nos membros que participam do workshop. Podem se permitir movimentos livres, segundo a força do campo familiar, onde frequentemente se revela as dinâmicas ocultas do que dificulta o amor fluir de forma saudável, os emaranhamentos, e a solução. Tendo observado essas questões, o condutor aponta para o cliente o que se apresentou, e conclui o trabalho usando algumas frases de ligação e de solução, movimentos de ligação e de solução. Assim o cliente toma uma nova consciência.
Qual a finalidade das constelações?
Devolver a identidade do cliente, para viver sua própria vida, para escolher com mais liberdade e assumir as consequências das escolhas como um adulto. Assumir sua vida do jeito e da forma que é sem culpabilizar outros, sem culpabilizar o destino ou mesmo o próprio Deus. Devolver a alegria de viver de forma real proporcionando uma leveza nas relações. Enfim, viver a vida, pois só se tem uma vida. E, viver a própria vida, contribui para a paz individual e social.
Por que nas constelações os representantes expressam sentimentos de alegria ou dor dos membros da família que ele está representando? Isso não é manifestação do espiritismo?
As constelações não trabalham com dogma de nenhuma religião. Certamente, todas as religiões enquanto expressão de um sistema de crença, de determinado grupo, tem sua importância, seja ela qual for. Um Constelador ou Constelando pode ter ou não uma religião, uma forma de expressão de fé. Da mesma maneira, pode existir Consteladores Agnósticos e Ateus. O fenômeno da expressão de sentimentos alheios ao representante, poderá acontecer independente da crença religiosa dos envolvidos. Não lidamos aqui com paradigmas dogmáticos, sejam eles religiosos ou científico mecanicista positivista. Nossa abordagem é cientifica fenomenológica, filosófica fenomenológica. Não existe nenhum misticismo como expressão de verdade no método das Constelações. Não obstante, alguns Consteladores carentes de uma formação mais profunda, por não terem tido aprofundamento da técnica, do método e da filosofia, não tiveram uma acurada formação Sistêmica fenomenológica, acabam por dogmatizar alguns aspectos assim como mistificar o mesmo. Aqui não cabe nenhum dogmatismo, já que o trabalho é de cunho fenomenológico.
Podemos chamar esse fenômeno das manifestações de sentimentos e informações dos representantes dentro de uma Constelação Sistêmica Fenomenológica, de Campo de Ressonância de Informação, ou seja, Campo Morfogenético. Esse campo foi observado pelo biólogo inglês Rupert Sheldrake, ele elaborou a teoria dos Campos Mórficos. Também Podemos chamá-lo de ressonância do cérebro social observado pelo neurocientista Matthew D. Lieberman, PhD UCLA. Em suas pesquisas ele observa que uma determinada área do cérebro, é ativada intensamente, por exemplo quando uma pessoa é excluída do grupo que pertence, é a mesma área ativada no caso de dor crônica, conclui-se que ser excluído provoca uma dor profunda registrada numa parte do cérebro chamada Córtex Cingulado Anterior. Essa dor de ser excluído do grupo do qual pertencemos foi observado intuitivamente por Bert Hellinger. Essa observação foi tema de pesquisa do mestrado de VÂNIA MEIRA E SIQUEIRA CAMPOS, médica e consteladora de Goiânia, o tema de sua pesquisa foi o corpo se lembra, doenças físicas e traumas. Podemos explicar ainda pela Epigenética, que trata de como os genes se expressam e produz informações de uma geração para outra a partir do meio ambiente que o indivíduo está inserido. Podemos observar nesse caso que pessoas que tenham passado privação de alimento numa geração, tem possibilidade de ter filhos na outra geração que mesmo tendo alimento disponível tendem a ser obesos, mesmo que não queiram, é uma informação que diz: “é necessário reservar energia para os tempos de escassez”.
Concluindo por hora, porque esse é um tema de muitas pesquisas, não acontece nada místico e religioso nas Constelações Familiares Fenomenológicas. O que acontece são fenômenos psíquicos, inconscientes e observáveis. Infelizmente, temos uma tendência de atribuir forças divinas e religiosas no que não entendemos ou temos preguiça de buscar o entendimento. Recorremos mais à autoridades constituídas hierarquicamente dentro dos nossos sistemas de crença do grupo que pertencemos do que a autoridade da verdade do conhecimento, essa exige expandir a consciência e ter uma postura crítica. Muitas vezes, preferimos a segurança de nossa Ignorância e Ingenuidade do que a Verdade do Conhecimento que nos obriga a sair da zona de conforto. Nenhuma autoridade cala a Verdade. A verdade é inexorável. Vivemos tempos de informações rápidas e sem profundidade, de expressões de pensamentos sem reflexões, sem parâmetros críticos. A maioria das pessoas que gritam seus argumentos, carecem de fundamentos, a falta de fundamentos sólidos produz argumentos dogmáticos e autoritários. Pessoas assim querem impor suas opiniões no grito. Nesse tempo de comunicação rápida, o entendimento é precário, ou seja, é um sofismo.
O que são Ordens do Amor?
Explico com uma comparação. Imagine uma jarra d’água. Imaginou? A jarra que limita água é a ordem e a água é o amor. Ou, veja o rio correndo. O rio corre no leito. O leito do rio é a ordem e a água que flui o amor. O amor não flui naturalmente sem a sua ordem, sem a ordem o amor gera doenças.
Quando alguém da família atual, vive a vida e o destino de um antepassado de forma inconsciente. O indivíduo, membro da família atual, é como que teleguiado pelo destino de alguém que foi excluído do sistema familiar anterior. O excluído pode estar na família dos genitores, dos avós ou dos bisavós, materno ou paterno, ou mesmo alguém que perdeu ou fez um sacrifício para que a família pudesse ter êxito. O indivíduo está identificado como excluído, ele não vive a sua própria vida e sim a vida do excluído.
Destino:
É um fato, um evento, ocorrido no passado com um ou mais ascendentes da família ou que os tenha afetado, gerando um movimento, uma força que chega aos descendentes sem que esses tenham consciência e escolha das consequências do fato ocorrido. Essa força que abraça os descendentes, pode ser positiva ou negativa. É algo destinado, querendo ou não chega aos descendentes. Ela nos chega pelo simples fato de pertencermos ao nosso sistema familiar, se pertencêssemos a outro sistema familiar que não o nosso, outras forças pertencentes àquele outro sistema familiar nos alcançaríamos, nos abraçaríamos. Não temos escolha, ela nos abraça, podemos escolher por quanto tempo perdurará o abraço. Não estamos aqui usando conceitos religiosos dogmáticos e sim um conceito existencial, sistêmico. Uma ação tem uma consequência boa ou ruim, e das consequências ninguém pode se eximir, culpabilizar outrem. Não constitui um determinismo que exime a responsabilidade, nem tampouco de predestinação no sentindo religioso. Constitui as consequências de ações do passado que reverberam no grupo familiar e por sua vez, nos indivíduos que o compõem.
Liberdade:
Ao falar de destino vem à cabeça o conceito de livre arbítrio e liberdade. O livre arbítrio (De Libero Arbitrio), é um conceito caro ao Cristianismo, tendo sido elaborado na obra de Santo Agostinho-De Libero Arbitrio, em 395 d.C., como a capacidade do ser humano em fazer uma escolha moral entre o bem e o mal; e, a liberdade é saber usar o livre arbítrio. Embora, o livre arbítrio esteja ligado à vontade e essa é uma ação, o livre arbítrio em si, constitui uma faculdade. Esse tema, não está presente apenas no cristianismo, mas também nas outras grandes religiões: Hinduísmo, Budismo, Islamismo.
Como temos observado esse fenômeno Liberdade nas constelações? Observamos que os clientes constelados ao longo dessas décadas tem uma liberdade limitada. Suas escolhas são inconscientes e não conscientes; mas, para alguém dizer que está usando o seu livre arbítrio e sua liberdade, ela deve gozar de plena consciência. Quando escolhemos algo, quem escolhe em nós? Quem está escolhendo uma profissão em nós? Quem escolhe o caminho na vida, a própria pessoa , seus desejos de satisfazer seus genitores ou levar equilíbrio ao seu sistema familiar? Não é regra geral, mas temos observado que advogados querem trazer a justiça dentro do seu sistema familiar, devido à uma injustiça cometida; um psicólogo, um médico, um terapeuta (curar algo do sistema), um padre, pastor ou rabino fazer um sacrifício expiatório por um destino pesado do seu sistema familiar. Num atendimento, ficou claro como um empresário abriu uma empresa de montagem de ambulâncias, numa tentativa de salvar a mãe que morrera vítima de um infarto , quando ele era criança, por falta de socorro. Ao tomar consciência disso, o pânico que tinha de chegar aos 52 anos, foi dissipado porque foi aos 52 anos que sua mãe foi à óbito. Atendendo uma médica intensivista, vimos que seu amor era direcionado para a irmã mais velha que morreu aos dois anos de idade, vítima de sarampo. A médica era a segunda filha de quatro irmãos; ela apresentava um cuidado com seus pacientes compulsivos, não tinha tempo de se alimentar direito, vivia num nível de stress elevado e quando um paciente ia à óbito, entrava numa culpa deprimente. Quando ela viu por meio das constelações que ela projetava nos pacientes o desejo de salvar a irmã mais velha que morrera, mesmo que não tinha conhecido essa irmã, ela ficou em paz. Além dessa médica olhar para a perda da irmã, ela também olhava para a dor que sua mãe acalentava de forma velada pela perda da primeira filha. Ela dizia internamente: “querida mamãe, fique tranquila, quando eu crescer irei lhe curar dessa dor, irei salvar minha irmã”. Por isso, se tornou uma médica intensivista, num hospital infantil. Todas às vezes que ela perdia um paciente, era como se perdesse a irmã novamente e não cumpria a promessa inconsciente que tinha feito à mãe. A culpa se fazia presente duplamente.
Liberdade é a capacidade de assumir a alegria e o peso da existência, assumir as consequências das escolhas, sejam elas conscientes ou inconscientes. Isso é possível quando somos adultos evitando culpabilizar alguém, o destino e o próprio Deus. Somente uma pessoa adulta pode fazer. Um adulto infantilizado irá buscar culpados em si, nos outros ou até mesmo em Deus. Pode alguém seguir em frente na vida e ter sucesso quando julga seus genitores? Naturalmente não. Na vida, queremos reescrever o passado no passado, isso não é possível, o passado pertence ao passado, podemos reescrever o passado no presente com novas escolhas, e, mais conscientes sem querer controlar o amanhã. O que aconteceu, não temos poder de mudar, mas podemos escolher agir de forma mais consciente no hoje, sem a pretensão de controlar as consequências que virão, as consequências apenas acolhemos, sem culpabilidade. Não estamos falando aqui em pré-determinismo.